O mandato do peixe pré-histórico
Carlos A. Silva, extraído do blog Manual de Culinária
Há várias maneiras de confirmar a frescura de um peixe. O brilho dos olhos, a vermelhidão das guelras, a rigidez das carnes, a integridade das escamas e o próprio odor são apenas alguns sinais. Mesmo conservado à força de gelo e sal, mesmo escamado e estripado, vê-se logo se um peixe é ou não fresco.
Mas há um peixe que, mesmo vivo e a dar à barbatana, é mais retrasado que um espécime congelado no tempo em que se inventou o primeiro frigorífico. É o peixe pré-histórico, que cruza as profundezas dos mares desde há milhões de anos. É tão antigo que, ainda os dinossauros não existiam, já ele abanava a cauda no caldo primordial. Não se sabe por que capricho da natureza, mesmo depois dos grandes lagartos se terem transformado em curiosidades de pedra, ainda o peixe pré-histórico continua a percorrer os oceanos, com o seu ar sisudo e carrancudo.
Ora, certo peixe pré-histórico foi um dia convidado por um cardume de peixitos para se candidatar a uma autarquia das profundezas. A princípio, mostrou-se relutante, mas acabou por sucumbir ao discurso melífluo dos peixitos: que era preciso destronar o bacalhau que então os chefiava, que era preciso abrir espaço à livre iniciativa, que era preciso isto, que era preciso aquilo… E aquele que tinha melhores condições para o fazer era ele, pois então. Mesmo que fosse feio que nem uma alforreca, mesmo que se portasse à mesa como um carroceiro, mesmo que não ousasse alinhavar quatro palavras sem cometer um atentado à inteligência, isso eram pormenores sem importância.
O que é certo é que aceitou o repto e ganhou por uma unha negra. Embora a prazo, tornou-se o líder supremo de todos os cardumes das redondezas.
Mas depressa o escamudo pré-histórico achou que autarquia rimava bem com autocracia. Eram ambas a mesma coisa. Ou não? Claro que sim. Não?
Quem tinha a ousadia de o desdizer levava logo no toutiço: começou de imediato a devorar os opositores e os possíveis concorrentes ao cargo. É que afinal era carnívoro e ninguém sabia.
Os peixitos puseram as barbatanas à cabeça, imaginando que teriam de suportar o labrego durante mais um milhão de anos. Tinham-na feito bonita. E agora?
A primeira ideia foi armar-lhe uma cilada e fazer com que fosse parar ao prato de algum «gourmet». Mas a profundidade a que se movimentava deixava-o a salvo das redes pesqueiras. Por isso é que tinha vivido tanto tempo...
Decidiram apoiar outros candidatos, tentando derrotá-lo nas eleições. Mas estes ou eram devorados antes do acto cívico, ou ninguém votava neles, com medo de ser devorado também.
Decidiram acusá-lo de corrupção, para o forçar a perder o mandato. Mas também não deu resultado…
A sorte, às vezes, surge quando menos se espera. Afinal o peixe pré-histórico acabou por abandonar o poder por causas naturais. Como era muito velho, não aguentava dietas ricas em proteínas, teve uma indigestão e morreu.
No funeral, os peixitos fingiram uma tristeza que não sentiam e lá mandaram o cadáver do odiado líder para o abismo dos notáveis.
Mas há gente que nunca ganha juízo: no dia seguinte, trataram de se reunir para escolher um novo candidato. E a discussão em que se envolveram era se deviam apoiar o bacalhau ou convidar um tubarão
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